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Rodrigo Hübner Mendes

Desmalandrando

ECOA

15/10/2019 09h59

"Você é brasileiro?", disse o solícito guarda quando pedi ajuda para comprar um suco numa dessas máquinas automáticas antes de pegar um trem em Bremmen, cidade ao norte da Alemanha. Enquanto procurava a fenda certa para colocar minha moeda, o senhor comentou: "A maioria das fraudes que encontramos nas caixas desses dispensers é moeda brasileira colocada no lugar de moeda europeia". Me senti envergonhado.

Mas a vergonha, certas vezes, pode ser pedagógica. Nos faz refletir sobre questões que estão adormecidas, naturalizadas. Nesse caso, o objeto da reflexão é a nossa cultura. Nossa inventividade em driblar as regras, quando nos convém, é imbatível. O que nos faz tolerar (quanto mais admitir e concretizar) a ideia de comprar uma coca-cola com uma moeda que não paga meia tubaína brasileira? Ou seja, fraudar uma transação comercial corriqueira, mesmo que seja só no valor de uma latinha como aquela?

Quando estudamos com mais cuidado a nós mesmos (com Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo), identificamos uma série de traços da cultura brasileira, como a hierarquia, o personalismo, o sensualismo e a malandragem. Malandragem? Sim, essa é uma marca do nosso "jeitinho" de ser. Trata-se de uma busca por agir entre o "pode" e o "não pode", que muitas vezes escorrega para a segunda opção, ou seja, o errado. O cidadão comum que não se sente mal ao consumir produto pirata ou de contrabando; o pai que pede aos maiores de idade da casa que assumam seus pontos na carteira de motorista (ou, ainda pior, "compra" a carteira para seus filhos); o empresário que se aproveita da ingenuidade (ou da cumplicidade) de alguém para cometer atos ilícitos em nome desse "laranja". Enfim, somos craques em cometer pequenos delitos e, no final do dia, apontar o dedo para Brasília acusando os suspeitos mais óbvios. Como se o micro não fosse parte do macro.

Sei que não é o caso de fazer generalizações preconceituosas ou catastróficas, dessas que chegam à conclusão de que não temos jeito, somos incivilizados crônicos ou coisa do gênero. Ao mesmo tempo, essa discussão sempre corre o risco de ser contaminada por outra, que é a de um suposto complexo de inferioridade crônico do brasileiro. Herdamos uma espécie de permanente ambivalência entre a euforia do "Deus é brasileiro" e a depressão do "Somos mesmo vira-latas" – o que não ajuda em nada. Mas o fato é que a malandragem rema contra nosso esforço de construir um país menos desigual, mais organizado e mais civilizado.

As sociedades mais inclusivas, sem exceção, são as que têm os melhores padrões de educação, ética e civilidade. São também aquelas que não toleram as tentativas de burlar as regras do jogo. O orgulho pela nossa criatividade, essa sim um traço positivo da nossa cultura, não pode ser confundido com a omissão perante a malandragem. Vale sempre visitar a sabedoria do ditado popular "Se o malandro soubesse como é bom ser honesto, seria honesto só por malandragem".

Sobre o Autor

Rodrigo Hübner Mendes tem dedicado sua vida para garantir que toda pessoa com deficiência tenha acesso à educação de qualidade na escola comum. É mestre em administração pela Fundação Getúlio Vargas (EAESP), membro do Young Global Leaders (Fórum Econômico Mundial) e Empreendedor Social Ashoka. Atualmente, dirige o Instituto Rodrigo Mendes, organização sem fins lucrativos que desenvolve programas de pesquisa e formação continuada sobre educação inclusiva em diversos países.

Sobre o Blog

A garantia do direito à educação para todos é o ponto de partida para reflexões sobre equidade, diversidade humana e construção de uma sociedade inclusiva.