Da piedade à compaixão
"Se a piedade não é o disparador principal da mudança, o que é que dispara a mudança?", me perguntou Lázaro Ramos quando conversávamos sobre as raízes de uma sociedade inclusiva. A preocupação em não olhar só para o próprio umbigo e ter sensibilidade para perceber o sofrimento do outro esteve sempre presente na minha família, desde a infância. Mas não de forma muito politizada. Morávamos em um bairro vizinho a uma favela e, muitas vezes, ao atender à campainha de casa, me deparei com pessoas muito pobres pedindo água. Isso me impactava muito. Numa dessas situações, a pessoa era um senhor aparentemente muito mal tratado. Não tive dúvida. Acabei dando, além da água, o dinheiro que havia juntado por meses. Me senti feliz pelo ato.
Pensando hoje com certo distanciamento, acho que essa história fala de uma manifestação de piedade. Este é um conceito que, muitas vezes, se mistura com valores religiosos e que pode ser descrito como algo semelhante a ter dó, ter pena, se apiedar do sofrimento alheio. "Pobre criança" é uma frase típica de alguém com piedade. Isso não significa diminuir esse sentimento. Até porque ele está na origem de gestos de enorme generosidade. Ligar no 0800 de uma campanha de TV pró-infância ou participar de eventos em instituições de caridade são alguns exemplos. Mas estes, em geral, são pontuais e dificilmente geram transformações estruturais, de longo prazo.
A busca da equidade, de um olhar mais coletivo, me parece dialogar melhor com o conceito de compaixão. Como bem coloca o Houaiss, compaixão é um sentimento compartilhado que se origina de uma tomada de consciência mais clara sobre o outro. De acordo com a filosofia budista, não é somente um tipo de ternura diante de uma pessoa que está com dor, mas uma determinação prática e contínua para fazer tudo o que for necessário para eliminar essa dor. No limite, trata-se de relação entre iguais na essência, que são desiguais na circunstância. Um bom exercício diário é nos colocarmos no lugar dos outros, com a premissa de que somos interdependentes. Incorporar esse ponto de vista em nosso cotidiano pode ampliar muito o impacto coletivo das nossas ações, seja qual for nossa atividade profissional.
Enquanto a piedade é ocasional e está ligada ao nosso desejo de nos sentirmos bem ao ajudar o outro, a compaixão é contínua e se alimenta de uma consciência de que estamos conectados ao outro. Enquanto a piedade muitas vezes alivia, a compaixão impulsiona. Enquanto a piedade mantém, a compaixão transforma. Mesmo sabendo da importância de ambas para um mundo carente de solidariedade, me parece que a viabilização de uma sociedade inclusiva, de uma transformação sustentável, pressupõe um deslocamento da piedade à compaixão.
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