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Rodrigo Hübner Mendes

A linha de largada

ECOA

22/10/2019 04h00

Outro dia, ouvi um senhor comentar que estava muito irritado com o fato de o filho não ter ingressado na universidade pública considerada seu plano A. "É culpa das cotas!", lamentava. Lembrei-me da ocasião em que o cineasta Spike Lee visitou o Supremo Tribunal Federal para acompanhar o julgamento sobre cotas para negros e indígenas. "Há um erro de avaliação de quem é contra", comentou.

Metáforas nos ajudam a refletir sobre temas complexos. Há um vídeo que circula no YouTube já faz algum tempo em que um professor de uma turma de adolescentes, em um grande campo aberto, pede a todos que formem uma linha, um ao lado do outro. Levanta, então, uma nota de cem dólares e diz que todos deverão correr até a outra linha, traçada uns cem metros adiante. Quem chegar primeiro levará os cem dólares.


Mas, antes de dar a largada, ele pergunta à turma quem ali tem uma casa estruturada, com pai e mãe. Pede que esses deem dois passos à frente. Depois, pergunta quem sempre teve acesso à escola particular. Esses devem dar mais dois passos à frente. Em seguida, pergunta quem jamais teve de ajudar nas contas em casa: outros passos adiante. Novas perguntas como essas vão sendo feitas, até que ele diz que dará o sinal de largada. É claro que o vencedor está entre aqueles que deram mais passos à frente a cada pergunta. E, a nós, que assistimos, fica evidente que fatores que não têm nenhuma relação com atos, virtudes ou qualidades individuais de cada aluno os colocam mais perto de uma oportunidade na vida.

Isso nos leva ao debate sobre quais critérios são mais justos para filtros sociais, como o vestibular. Quem merece o quê? Vamos a um exemplo concreto. Imagine um jovem que estudou a vida toda em escolas públicas da periferia com baixíssimas avaliações de desempenho. Em virtude da pobreza da família, nunca teve a oportunidade de participar de cursos extracurriculares ou intercâmbios para outros países. Esse jovem tira nota 8,5 no vestibular. Outro jovem, nascido em família de alto poder aquisitivo, estudou numa das escolas mais bem avaliadas do país. Aprendeu diversas línguas e conheceu a cultura de países de todas as regiões do mundo por meio de viagens pagas pelos pais. Sua nota no vestibular é superior à do seu concorrente. Supondo que estivessem disputando a mesma vaga, quem tem mais mérito?

A resposta é permeada de dúvidas e armadilhas. A decisão a ser tomada é diretamente influenciada pela nossa visão de futuro. Aquilo que desejamos para nosso país. Se nossa expectativa é manter o status quo, quer dizer, reproduzir os abismos sociais que marcaram nossa história, a resposta é simples. Ganha a vaga quem tiver a nota mais alta e ponto. Vamos tocando a vida como ela sempre foi. Os menos afortunados que se virem. Mas não sejamos cínicos de ficar reclamando que o país é muito violento, que nosso capital humano é de baixa qualificação, que outras regiões do mundo são mais civilizadas, sem nos engajarmos em discussões sobre como melhorar nossa realidade. Agora, se desejamos um país menos desigual, o preço a pagar envolve esforços para investirmos em mecanismos que virem o jogo da exclusão.

A decisão sobre o exemplo dos vestibulandos continua sendo muito difícil, mas precisa ser encarada por meio de um diálogo generoso em que todos estejam disponíveis a reconsiderar suas convicções. É bom lembrar que, como o próprio nome já diz, somente uma parcela das vagas nas universidades é regida pelos critérios das cotas. Critérios que precisam ser constantemente avaliados e revistos com o objetivo de tornar essa ação afirmativa desnecessária no futuro.

Esperar que a igualdade emerja espontaneamente é uma ilusão que corrói nosso futuro. Precisamos, como sociedade, conseguir colocar as pessoas na mesma linha de largada.

Sobre o Autor

Rodrigo Hübner Mendes tem dedicado sua vida para garantir que toda pessoa com deficiência tenha acesso à educação de qualidade na escola comum. É mestre em administração pela Fundação Getúlio Vargas (EAESP), membro do Young Global Leaders (Fórum Econômico Mundial) e Empreendedor Social Ashoka. Atualmente, dirige o Instituto Rodrigo Mendes, organização sem fins lucrativos que desenvolve programas de pesquisa e formação continuada sobre educação inclusiva em diversos países.

Sobre o Blog

A garantia do direito à educação para todos é o ponto de partida para reflexões sobre equidade, diversidade humana e construção de uma sociedade inclusiva.